A VIDA ALÉM DE SI...



No decorrer da atual pandemia, a humanidade vem perdendo diariamente seus avós, pais,  cônjuges, irmãos, filhos e amigos. Estas perdas, entretanto, são, por um lado, mais dolorosas devido à mentalidade capitalista, tão ou mais "contagiosa" que a Covid 19, que transforma a morte em uma remota probabilidade em vez de conservá-la como sendo um evento certo, cotidiano e fatal.

A real condição humana, ou seja morrer, é, assim, desviada para um labirinto de ilusões mercadológicas e consumistas que isentam o ser humano da responsabilidade pelo outro e por ele próprio, criando uma crença de imortalidade absolutamente falsa, apoiada, sobretudo, no zelo excessivo do corpo e legitimada pelo discurso da qualidade de vida, da saúde, da longevidade e da estética.

Temos aí um nítido exemplo de ser humano bem real buscando essa pseudo imortalidade. Nesse mesmo rumo, vemos os entretenimentos do cotidiano que lançam imagens de ódio e de vingança sem nenhum conteúdo ou dimensão trágica, apenas como fatos a serem esquecidos e tão logo se desliguem os meios de comunicação são automaticamente apagados da consciência humana.

Inserida em uma nefasta lógica de consumo, a vida se transformou em uma mercadoria; ou em um objeto que adquire forma quando, perigosamente, relaciona a necessidade da beleza e da juventude a uma insensata vaidade que não somente retira do ser racional sua autonomia para fazer escolhas, mas, principalmente, a capacidade de questionar sua existência.

Em nossos dias ter consciência própria é uma missão quase impossível; uma vez que a publicidade comercial ou social é tão atraente que nenhum ser humano medíocre resiste aos impactos da propaganda. Andar na moda, por mais podre que ela se apresente, é pré-requisito do homem pós moderno, para o qual a moda é quase sempre não ter modos; ser escravo da opinião pública ou dos senhores para os quais se vendem, e jamais se guiar pela própria vontade, mas obedecer cegamente a convenções alheias.

Impondo o culto ao corpo saudável, à estética impecável e à juventude eterna, a sociedade contemporânea determina o modelo atual do ser humano acolhendo o consumismo como regra de convívio social, de aceitação e de formação de identidade nunca permitindo, porém, a cada pessoa o domínio sobre sua própria vida, sujeita quase sempre a coerções ou ordens sociais.

Desse modo, os modelos atuais de ser humano provocam certas distrações que acabam desviando a atenção sobre a vida ao cegar e entorpecer seus adeptos, impedindo-os de terem tempo para estar consigo mesmos; ou para pensar em si, indagando quem são, onde estão e para onde irão.

A ausência desse entendimento ou compreensão desencadeia a negligência e a insensibilidade sobre a própria vida, pois esses modelos humanos fazem parte de uma era "anestesiante" que  incapacita os homens  de sentir a pressão de um poder no qual eles só são respeitados por aquilo que possuem: dinheiro, posição social ou prestígio político; sendo, assim,  coisificados ao deixar de ser alguém para se tornar algo sem terem a mínima visão de uma felicidade transcendente e satisfeitos com sua quimérica  eternidade terrena.

Ao contrário desses paradigmas que fazem a vida sem sentido, há, por outro lado, justamente o conhecimento e aceitação da morte, aliviando a profunda e constante dor da perda de entes queridos naqueles que contemplam a si mesmos e por isso, como humanos, podem contemplar também o mundo exercitando, enfim, a empatia e a simpatia pelo outro que só se efetivam na consciência humana quando geram mais amor e respeito, uma vez que todos que caminham na terra estão prometidos para a morte que os coloca, como em nenhum outro evento, em situação de total igualdade.

Mesmo diante do poder de dominação imposto por este vampírico sistema, talvez, seja possível, no momento atual, em que temer a morte implica em temer a vida, o pensar em uma outra existência mais tranquila e segura; onde mesmo sabendo de sua natureza mortal, o renovado ser humano não seja proibido de viver de forma destemida e em absoluto contentamento.

Em nossos dias, portanto, aprender a morrer significa, paradoxalmente, aprender a viver; isto porque, conhecer a morte revela o conhecer o sentido da própria existência, fazendo da vida um tempo de amor, de tolerância, de intensidade e de compreensão; mas, principalmente, sendo autêntico para que esse tempo de aprendizado se efetive, rompendo, em suma, com o entorpecimento coletivo exposto aos apelos midiáticos em nome de uma vida profana com ênfase unicamente no plano terreno, sem quaisquer anseios metafísicos.

Por: VALTER SILVA professor e poeta


Filadélfia Bahia, 04 de fevereiro de 2021.

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