MALANDROS E MANÉS: A ÉTICA DA SOBREVIVÊNCIA



“O Estado esmaga o oprimido

Não há direitos para o pobre

Ao rico tudo é permitido
À opressão não mais sujeitos
Somos iguais todos os seres
Não mais deveres sem direitos
Não mais direitos sem deveres.”

Esses versos contidos na Internacional Socialista retratam com absoluta exatidão como a excludente sociedade do capitalismo não tem por objetivo estabelecer a justiça social; porém, instigar meios práticos de provocar divisões nas camadas sociais que legitimem a aplicação da repressão oficial, tanto para os desfavorecidos materialmente, quanto para todos que lutem pela implantação da justiça social.

Conservando traços de sua época colonial escravista, a sociedade brasileira é, desde os primórdios, estruturada em sua hierarquia pelo espaço social que delimita a forma verticalizada em todos os aspectos desse paradigma, onde, enfim, as relações sociais e o próprio discernimento de cada indivíduo atestam o vínculo entre um superior que manda e um inferior que obedece.

Nesse contexto, quase desprovida da cidadania, a massa humana, confinada em seu espaço de exclusão, não pode, sequer, lutar adequadamente por seus direitos políticos, porque, cada vez que o Estado esmaga o oprimido, de forma real ou simbólica, o próprio povo, de certo modo, aplaude essa opressão. Isso ocorre, quando, por exemplo, o sujeito, embora consciente de seu excepcional poder perante as imposições do padrão social formalizado, deixa de lutar contra esses alienantes e arbitrários constrangimentos, unindo-se, então, a uma viciosa coletividade que almeja tão somente a ampliação de sua suposta qualidade de vida e a afirmação dos seus direitos políticos, pautados, porém, em privilégios individuais.

Esses anseios egoístas, longe, todavia, de representar uma transgressão generalizada de seus adeptos, assumem o papel de meio de sobrevivência deles e, ao mesmo tempo, funcionam como justificativa para a violação praticada por cidadãos contra seus próprios direitos coletivos e para o descaso consciente dos mesmos aos costumes éticos e à própria moral.

Ainda que a desculpa da luta pela sobrevivência não seja, necessariamente, o único motivo para a prática da fraude e do desrespeito às regras morais e legais, essas atitudes, ao longo do tempo, passaram a ser aceitas como forma de adaptação dos brasileiros a um meio hostil, refletido em uma sociedade cruel e com enorme abandono do poder público, que os obriga à adesão da malandragem.

A partir daí, no desenrolar histórico-cultural do Brasil, despontava a chamada apologia da malandragem, na qual, o jeitinho, deixando de ser simples mecanismo adaptativo, reflexo de nossas precárias condições de sobrevivência, transformava-se em modelo de identidade brasileira. Em outras palavras, a exaltação do espertalhão, aquele que sempre se dá bem e leva vantagem em tudo, passou a prevalecer e este protótipo de cidadão começaria a ser admirado como um vitorioso na luta pela vida; e visto como exemplo a ser seguido ou modelo de um comportamento ético paralelo que se converteu em referência para si mesmo.

Funcionando, portanto, como válvula de escape, a transgressão pela malandragem, agora na condição de valor, além de ser compreendida como honrosa distinção e caráter inerente a certos indivíduos, ainda impede o surgimento de uma pressão social efetiva capaz de proporcionar as imprescindíveis mudanças nos sistemas administrativo e legislativo.

A postura individualista da ética da malandragem impossibilita, portanto, o emprego de estratégias mais amplas de insurreição popular ao ter como objetivo primordial de existência a implantação de um novo milagre, semelhante ao milagre econômico dos anos da ditadura, visto como o mais sinistro da História do Brasil, que com base no arrocho salarial e na repressão do movimento organizado dos trabalhadores traria à classe média daquela época maior acesso aos artigos eletrodomésticos e a produtos importados.

Em nossos dias, assistimos a um cínico apogeu da civilização criada pela mercantilização da vida e também pelo doentio e vaidoso consumismo, que geram uma situação de inconstância política e de ineficiência em todos os setores e escalões da administração pública; além dos desequilíbrios sociais e da crise econômica e financeira, vinda de tempos muito remotos, e hoje mal disfarçada por um crescimento material pragmático e desordenado que diante da precariedade das próprias bases estruturais em que está assentada a vida do país, mostra sua verdadeira cara; ou seja, o “Salve se quem puder”, com cada um cuidando somente de seus interesses pessoais e procurando tirar partido em benefício das oportunidades que, porventura, se apresentem.

Não mais associada a um grupo humano que coletivamente aspira ao aumento da potência de agir, buscando aprimorar suas condições de vida dentro de anseios e necessidades comuns, a sociedade contemporânea, perdendo gradativamente a compreensão da importância desse relacionamento social, único potencializador da força vital da coletividade, banaliza e até mesmo justifica a crescente e desgraciosa corrupção que assola o Brasil como um todo, trazendo, como real consequência, uma aguda desestruturação social que torna as condições de vida cada vez mais caóticas e sinistras , à medida em que se associa a esse modelo pouco ético e malandro de ser.
Filadélfia Bahia, fevereiro de 2021.

Por Valter Silva.

Valter Silva é poeta e professor.

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